6. Prospectiva sobre as tendências do emprego transfronteiriço: Euro-região Galiza-Norte de Portugal
6.6 A problemática inerente ao acesso aos serviços públicos de saúde
Estamos perante uma das questões que suscitou maior interesse aos peritos. No entanto, esta é a questão acerca da qual possuem menos informação e conhecimento menos exaustivo, apesar de reconhecerem a importância da mesma. A este respeito, a assistência sanitária foi objecto de um dos projectos de investigação que se desenvolveram através do INTERREG II.
O objectivo fundamental que move a cooperação transfronteiriça no âmbito da saúde é a possibilidade de os habitantes de um e do outro lado da raia poderem utilizar reciprocamente os recursos sanitários, servindo como um dos primeiros passos para a integração real desta Euro-região. Assim, o desenvolvimento das relações económicas, sociais e culturais estabelecidas no âmbito do actual quadro de integração comunitária deveria corresponder-se com a cooperação e articulação das organizações públicas e privadas, entre as que se encontram todas as relacionadas com a assistência sanitária.
A possibilidade de estabelecer âmbitos de cooperação transfronteiriça no que diz respeito à saúde apoia-se tanto na própria intenção das respectivas legislações de saúde como no modelo de sistema de saúde pelo qual optaram a Galiza (Espanha) e Portugal. O sistema de saúde na Galiza forjou-se fundamentalmente a partir da aprovação da Lei Geral da Saúde (Ley General de Sanidad) (LGS) em 1986, que possibilitou as transferências no campo da saúde às comunidades autónomas, tornando efectivo o anteriormente aprovado Estatuto de Autonomía da Galiza (1981). Com estes antecedentes, e apesar de se conhecerem já as primeiras transferências nos finais da década de setenta e nos princípios dos anos oitenta, foi em 1990 quando se aprovaram as transferências dos cargos e serviços à Consellería de Sanidade e Servicios Sociais da Xunta da Galiza, incluindo os recursos humanos e materiais sanitários desta Comunidade Autónoma, transferidos ao denominado Servicio Galego de Saúde (SERGAS). A aprovação dum Plano de Saúde da Galiza e a ordenação dos recursos socio-sanitários facilita uma organização do sistema adaptada às condições do país.
A ordenação do Atendimento Primário e Especializado manifesta-se fisicamente na dotação e distribuição de uma série de recursos no território. Basicamente são os centros de saúde, os consultórios para o atendimento primário, os hospitais e os centros de especialidades para o atendimento especializado.
O sistema de saúde português é o resultado dos princípios e orientações socio-políticos ocorridos em Portugal como consequência da Revolução de 1974. Antecipando-se numa década relativamente a Espanha, em Portugal começam a instaurar-se os princípios próprios do Estado do Bem-estar nos finais da década de sessenta. No entanto, a instauração de um sistema de saúde de carácter universal e gratuito não tem lugar até 1979 (Lei do Serviço Nacional de Saúde). Entre os princípios fundamentais do sistema destaca-se, da mesma maneira que na LGS espanhola, a garantia de prestar cuidados integrais a todos os cidadãos, inclusivamente aos de outras nacionalidades. Assim sendo, as origens e objectivos de ambas as leis facilitam a cooperação transfronteiriça. A aprovação posterior de uma Lei de Bases para o Serviço Nacional de Saúde em 1990 teve como resultado a criação dum sistema de carácter mais liberal, mas que não afectou negativamente os princípios básicos que garantem o atendimento universal e gratuito.
Apesar de os Estados espanhol e português terem uma organização administrativa diferente, a cooperação no âmbito da saúde entre a Galiza e a Região Norte de Portugal viu-se facilitada nos últimos anos como consequência do início dos processos de descentralização e regionalização sanitária no país vizinho.
Um dos principais obstáculos administrativos e políticos tem a sua origem no facto de a cooperação sanitária ter de se estabelecer entre níveis diferentes: o autonómico (Galiza) e o estatal (Portugal). A sensibilização perante qualquer problemática transfronteiriça no que diz respeito à saúde é muito menor em Lisboa (Ministério da Saúde), segundo afirmam os peritos portugueses, de tal modo que, por exemplo, é mais difícil conseguir que uma receita passada em Tui seja aceite em Valença do que conseguir que uma receita de Valença seja aceite no Algarve. Ainda assim, as intenções positivas do Ministério da Saúde português, vindas do poder central (Lisboa), e o início da descentralização sanitária depois do estabelecimento de regiões e sub-regiões de saúde facilita a relação entre ambos os espaços. De maneira similar ao que acontece na Galiza, o atendimento primário em Portugal é proporcionado pelos centros de saúde e pelas extensões dos mesmos, e a assistência especializada é proporcionada através dos centros hospitalares.
Mapa 6. Distribuição dos dispositivos sanitários: Atendimento Primário e Especializado.
Fonte: Consellería de Sanidade e Servicios Sociais da Xunta de Galicia e Ministério da Saúde de Portugal. Elaboração própria.
A dotação de dispositivos de Assistência Primária no território Eures Transfronteiriço é aceitável a ambos os lados da fronteira. Isto deveria constituir um primeiro passo em direcção à atenção conjunta dos mesmos, ao não serem detectados contrastes de equipamentos importantes entre ambos os territórios. A descentralização do Atendimento Primário no próprio município é uma diferença importante a favor do sistema português, uma vez que, além do centro de saúde, cada concelho conta com um bom número de extensões do mesmo, quase uma por cada freguesia, o que facilita muito o acesso ao atendimento. Na Galiza, cada município do nosso território de estudo conta com o seu correspondente centro de saúde situado na capital do município, e muito poucos municípios possuem consultórios de apoio noutros núcleos ou freguesias do concelho.
Neste nível assistencial, os trabalhadores transfronteiriços portugueses e espanhóis não se opõem à utilização dos serviços de saúde independentemente do país onde se encontrem. No entanto, a maior complexidade assistencial associada à assistência hospitalar introduz as primeiras dúvidas sobre a utilização conjunta dos serviços. Neste aspecto, deve-se de igual modo distinguir os comportamentos conforme se trate de hospitalização programada ou urgências hospitalares.
Como nos confirmaram os diferentes peritos da Administração galega e lusa, os respectivos sistemas de saúde permitem a assistência sanitária a portugueses e espanhóis. Se a pessoa que tem necessidade de receber qualquer tipo de assistência hospitalar trabalha no mesmo país, a legislação garante a assistência sanitária em igualdade de condições como um direito do trabalhador. Constata-se, no entanto, que os galegos residentes em Portugal são renitentes em receber assistência hospitalar, dado que têm uma visão negativa do sistema de saúde português, pelo que preferem ser atendidos, pelo menos nos casos de certa gravidade, em centros da Galiza. Por sua vez, no que diz respeito aos trabalhadores portugueses na Galiza dá-se a situação inversa. Por uma parte, preferem em muitos casos a assistência hospitalar galega, devido à sua melhor imagem de qualidade assistencial. Mas por outra parte, quando o doente necessita estar hospitalizado durante vários dias, prefere a transferência para Portugal, devido a uma simples questão de familiaridade e proximidade à sua residência paterna.
Por isso, se um português trabalha na Galiza, não vai ter grande problema na hora de receber todo o tipo de assistência sanitária, tanto ele como a sua família, nos centros galegos; e de igual modo acontece com os galegos residentes em Portugal. Da mesma maneira, quando se trata de assistência urgente no espaço transfronteiriço, hospitalar ou não, e sobretudo quando é necessária a mobilização dos serviços de transporte urgente (ambulâncias), o trabalhador transfronteiriço tem os mesmos direitos que o nacional. A urgência está também coberta quando se trata dum visitante português na Galiza ou vice-versa. Todos nós sabemos que temos garantidas as nossas necessidades de saúde, uma vez que posteriormente o sistema de saúde onde o doente foi assistido envia a factura dos gastos ao sistema do país de onde provém o doente.
Sendo assim, um problema maior, e que já tem sido questionado como um dos principais objectivos a resolver por intermeio do INTERREG II, coloca-se quando se trata de um acidente, quer de portugueses quer de galegos, e os serviços de urgência têm a obrigação de se deslocarem com o doente ao hospital de referência do lugar onde se tenha produzido o acidente, quando
o mais lógico seria deslocar o doente ao hospital que estiver mais próximo, apesar de que exista uma fronteira pelo meio. Deste modo, não deveria voltar a repetir-se o caso real que se pôs como exemplo nas reuniões transfronteiriças do INTERREG II: um português tinha sofrido um acidente na Ponte Internacional sobre o rio Minho (Tui-Valença do Minho). A assistência urgente foi proporcionada por uma empresa de ambulâncias contratada pelo sistema de saúde português, pelo que tinha a obrigação de o transportar para o hospital de referência (o Hospital Distrital de Viana do Castelo), quando se encontrava a menos de vinte minutos do Hospital do Meixoeiro de Vigo. O acidentado faleceu durante a viagem para o hospital de Viana. Uma barreira burocrática simples de solucionar originou uma absurda decisão de assistência sanitária.
Tanto os peritos galegos como os portugueses são partidários de acabar com esta linha fronteiriça também para a assistência sanitária, estruturando áreas de referência mais flexíveis entre os hospitais do Meixoeiro e de Viana do Castelo, por um lado, e os de Verín e Chaves, por outro. Deste modo, poder-se-iam atender os doentes de ambos os lados da fronteira, o que seria de grande importância tanto no que diz respeito à complementariedade de especialidades como para a assistência urgente baseada na facilidade de acesso e a solução conjunta nos casos de saturação dos serviços de cirurgia e das consultas externas. Directamente relacionada com a ordenação resultante estaria a planificação estratégica doutros serviços paralelos, tais como o transporte sanitário urgente.
Como conclusão, a normativa da saúde em vigor em ambos os países não estabelece nenhum impedimento legal para a prestação de serviços de saúde a cidadãos de outros países, incluindo os nossos vizinhos. Igualmente, os principais diplomas não contradizem o desenvolvimento de formas de cooperação transfronteiriça de carácter bilateral, garantindo sempre alguns dos princípios fundamentais do SNS: os da universalidade e da equidade no acesso aos cuidados de saúde.
Definição de tendências:
Aprofundamento dos estudos de viabilidade galego-portugueses, já iniciados no INTERREG II, para o estabelecimento de uma ordenação sanitária conjunta no território transfronteiriço.
Intensificação dos contactos bilaterais para a definição de áreas de referência hospitalar conjuntas, eliminando o efeito fronteira: reordenação da Área de Saúde de Vigo e da área de referência do Hospital do Meixoeiro de Vigo para incluir no seu âmbito de influência determinados municípios do Norte de Portugal. Possibilidade de iniciar estudos sobre a viabilidade da cooperação (complementariedade de especialidades) entre os hospitais comarcais de Verín e Chaves. Inclusão nas estatísticas sanitárias da Galiza e de Portugal de informação relativa ao uso dos serviços de saúde por parte de doentes do país vizinho. Planificação dos serviços de transporte urgente conjuntos para o território transfronteiriço onde também se integrem os serviços de bombeiros. Campanha de educação dos trabalhadores transfronteiriços para dar a conhecer os seus direitos sanitários. Continuidade do processo de descentralização sanitária em Portugal, o que proporcionará uma maior autonomia da Região Norte de Portugal no momento de estabelecer convénios de cooperação com a Galiza. Estudo da possibilidade de estabelecer um gabinete transfronteiriço de investigação e informação sanitária. Em resumo, incremento geral das relações bilaterais para o desenvolvimento de uma cooperação eficaz no âmbito da assistência sanitária. |